A LEGITIMIDADE DE KHADAFI
por Clóvis Pacheco
O texto abaixo foi totalmente escrito por Clóvis Pacheco, em suas palavras:
“de recordações de meus tempos de jornalista de noticiário internacional e de tradutor da Agence France Presse, e de depoimentos de parentes idosos, alguns dos quais bastante instruídos, médicos, advogados e engenheiros”.
Seriam, então, seus atos (de Khadafi) legitimados pelo povo que, por absoluta inércia, nunca buscou eleger democraticamente seus representantes?
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Quanto a isso, não tenho a menor dúvida! E a falta de eleição democrática na Líbia não precisa ser em si mesmo ato de inércia, mas de tradição. Ou se quisermos, de falta de tradição democrática. Inércia seria se eles, anteriormente, tivessem passado por uma tradição democrática, e por qualquer motivo, como o desencanto, por exemplo, acabassem por deixar de lado a participação.
Mas não é esse o caso; na Líbia, jamais ocorreu democracia, a não ser no âmbito restrito das tribos de beduínos, ou das aldeias de camponeses, e mesmo assim, com a participação estrita dos homens adultos que sejam chefes de família, e para decidir coisas de pequena relevância. Por exemplo, um homem de 60 anos, pai, avô, bisavô, que tiver vivo o velho pai de 80 anos, e esse não for decrépito, não será chefe de família... Nada de participação plena, portanto. E com as mulheres, menos ainda! Nada de feminismo com eles! Elas JAMAIS serão chefes de família, mas estarão, SEMPRE, sob a tutela do filho que o for. Na falta de um filho nessa posição social, do irmão, do cunhado, de qualquer outro macho barbado.
A Líbia, desde o século XVI e até 1910, fez parte do Império otomano, dentro do qual não havia democracia, quando muito, o paternalismo de algum sultão mais tolerante. É o mesmo caso de todos os demais países árabes, com exceção do Marrocos, que nunca foi ocupado pelos turcos otomanos. A autoridade do sultão era frouxa, devido às distâncias, e o custo para manter um forte exército, de modo que com o tempo, o bei de Trípoli – o chefe local nomeado pelo sultão – acabou adquirindo verdadeira soberania. O mesmo com outros governantes similares, como o bei de Tunis, o bei de Argel, o paxá do Egito, dos quais o mais notável foi Mohammed Ali, que nem egípcio era, mas albanês, e criou uma verdadeira dinastia, cujo último representante foi o rei Farouk, deposto por Nasser, em 1952.
Em 1910 a Itália recém-unificada (em 1870) derrotou o decadente Império Otomano, e ocupou a Líbia, facilitada pela grande proximidade geográfica, maior que a da Turquia, e assim, com maior facilidade para o suprimento logístico, pelo fato de já possuir razoável indústria de armamentos, pelo menos, em termos comparáveis com o otomano, e maior frota naval. Até o final da Segunda Guerra Mundial, a Líbia foi possessão italiana, e ainda não havia o interesse petrolífero, mas o geopolítico, permitindo à Itália dividir o Mediterrâneo já grandemente barrado por seu próprio território e apenas contrabalançado, no local, pelo fato de Malta ser possessão inglesa.
Como colônia, a Líbia não teve qualquer impulso para que desenvolvesse instituições de participação, que isso iria atuar contra os interesses da dominação. E logo em 1922 veio o fascismo, e já podemos imaginar que tipo de representação o Mussolini permitiria.
Derrotado o fascismo, chegou ao poder o grupo mais organizado da Líbia, a confraria islâmica senussita, sendo que no mundo islâmico, e em especial, na África, as confrarias faziam, informalmente, o papel que noutros locais é desempenhado pelos partidos políticos, como canais de participação. Mas a sociedade civil líbica era insuficiente para reivindicar maior participação, e suas elites, tradicionalistas, viam com desconfiança as instituições típicas da democracia representativa. Além disso, as elites sociais do país eram minúsculas, restritas às poucas cidades do litoral como Trípoli, Bengazi e outras, e muito conservadoras, isso num país em que a maioria da pequena população daquele momento era composta por beduínos – nem todos recenseados – e camponeses que viviam de culturas de subsistência. Era de cerca de 2 milhões de pessoas, pouquíssimo, para o tamanho do país, e isso, apenas em termos quantitativo. Qualitativamente, sua carência era ainda maior.
À falta de elites organizadas deu a oportunidade de que surgisse uma liderança islâmica dentro da única entidade mais ou menos coesa, o exército, ainda que até a derrubada do rei Idris, não fosse senão uma tropa de janízaros a serviço do poder. Essa liderança é o Khadafi, gostemos dele ou não, que isso já é outro assunto.
Situação semelhante à do Egito sob o rei Farouk, em que o exército, derrotado por Israel em 1948, desenvolveu uma elite, os Oficiais Livres, de que o futuro coronel Gamal Abdel Nasser era a alma, e de que faziam parte Anuar el-Sadat e Hosni Mubarak, ainda que sem o brilho do coronel. O exército egípcio já era mais organizado, não se limitava a ser um corpo de janízaros a serviço do rei, mas o embrião de uma verdadeira corporação amada, bastante representativa do povo, pois ao contrário das oficialidades de outros países, era formada por pessoas originárias classes medias e baixas. E em breve, em 1952, deu o bilhete azul àquele monarca, que era nem mesmo era árabe de origem étnica, mas bem mais circassiano otomano, em que pese sua descendência do albanês Mohammed Ali, também não egípcio. O rei Farouk, educado à inglesa pelos ocupantes virtuais do seu país, demorou muito para aprender o árabe, se é que um dia dominou de fato o idioma, e tinha grande desprezo pelo povo do país do qual se tornou rei ainda adolescente.
Como o Egito possuía uma elite mais organizada, dentro da qual existia um partido nacionalista conservador, formado pelos latifundiários, o Wafd, foi possível existirem instituições representativas de maior significação. E mesmo as minorias estavam representadas, como o atesta a carreira de Butros Gali, ministro das Relações Exteriores e depois, secretário-geral da ONU, diplomata de origem copta, e, portanto, um cristão monofisita, e, por sinal, casado com uma judia egípcia.
Cito o caso do Egito, apenas, em termos comparativos, para explicitar como são diferentes os dois casos, apesar de em seu ponto de partida os dois países tiveram muitas semelhanças, em se tratando de colônias ou de semicolônias, o Egito estando sob o sistema consagrado pelos ingleses do indirect rule, com um chefe nominal egípcio. Esse foi o caso dos khedivas que se seguiram à virtual ocupação do país por parte da Inglaterra, depois que o controle acionário do canal de Suess passou para mãos britânicas. Tinham, por sinal, bem menos autonomia que Mohammed ali, virtual senhor do Egito, súdito apenas nominal do sultão de Istambul, situação assumida por seu filho, Ibrahim Paxá, e alguns outros poucos, até que a aventura do canal jogou o Egito sob o controle inglês: o canal, em si mesmo notável obra de engenharia, pouco beneficiou os egípcios.
Nasser, além de nacionalizar o canal, interveio na industrialização, com o Estado bancando projetos, nacionais e em cooperação com outros países, como foi o caso da represa de Assuan, conduziu a expansão da educação, reduzindo de modo drástico o clássico analfabetismo, que era de 80% nos tempos do rei Farouk, e do sistema de saúde. E nota das mais importante,s estabeleceu a reforma agrária,coisa que nós, no Brasil, até hoje pagamos para ver...
Conduziu o Egito, ainda, na política internacional dos países não-alinhados, o que era uma esperança de independência com relação aos dois grandes megablocos da guerra fria, junto com Nehru, da Índia, Tito, da Iugoslávia, Sukarno, da Indonésia, Senghor, do Senegal.
Nasser tinha um projeto, portanto, tal como Habib Bourguiba, da Tunísia, também o teve, e Khadafi o tem, e o conduziu, enquanto viveu. Os que vieram depois, al-Sadat e Mubarak, detonaram o projeto, tal como ocorreu também na Tunísia: Bourguiba, idoso e esclerosado, deixou de comandar o projeto, mas não saía do cargo, até que foi derrubado, dizem que sem que se mostrasse um canhão ou fuzil, mas apenas um atestado médico... E daí o projeto tunisiano foi também para o brejo.
Se observarmos a situação da Síria, o projeto desenvolvido por eles, ainda que sob um Estado policial, instituído pelo falecido presidente Hafez al-Assad, pai do atual presidente sírio Bashar al-Assad. O governo sírio é fortemente intervencionista, tal como o era o de Nasser, e vem conduzindo do modo como é possível a vida econômica do país, em sua modernização,aos trancos e barrancos. A Síria também tem projeto nacional – e nenhum de nós precisa concordar com ele, para reconhecer o fato – e isso garante certa margem, de segurança ao governo de lá.
O povo do Egito e o da Tunísia se revoltaram com o fato de que além de terem os projetos nacionais brecados, a corrupção avançou, mais que os limites toleráveis. O padrão de vida da população baixou extremamente, e as elites de origem popular não encontram campo, como o casos dos engenheiros que vendem laranjas ou os contabilistas que trabalham como repositores de supermercado.
Além disso, a laicização do Estado, nos dois países, permitiu uma relativa ocidentalização, de modo que as idéias modernas e ocidentais de democracia formal e de democratização social já se fazem sentir, mais que em outros países da área. Daí o descontentamento popular, que sensibilizou os exércitos egípcio e tunisiano, compostos, principalmente, por pessoas nascidas nos estratos médios e populares.
Isso ainda não ocorre na Síria: nem o projeto sírio foi brecado, nem a corrupção síria atingiu o grau que chegou a ser no Egito mubarakiano.
E a Líbia? Ainda está longe de ter uma elite que queira democracia ocidental acima de tudo. O que eles querem é um rais, um líder, um condutor. Recordemo-nos que rais era o título popular dado a Nasser, e ele desempenhou muito bem o papel. A Líbia tem o seu, que é o Khadafi, evidentemente, sem o descortínio de Nasser, homem culto, leitor voraz, que se atualizava a cada momento, e totalmente desprendido de ambições materiais. Tanto que quando morreu, não tinha casa própria, e sua viúva teve que viver de sua pensão de coronel reformado, que ele nem pensara em se autopromover a general.
Bem, Khadafi ofereceu algo à Líbia. Se isso basta, se o custo social foi alto, é outro assunto. Por isso, ele tem partidários, civis, entre a população, e a lealdade do exército que criou.
Daí seu poder ser legítimo, pelo menos, segundo os critérios weberianos, assim como os de Maquiavel, que demonstrou que o primeiro passo para a legitimação de um Príncipe, além do consentimento, é ter algo a apresentar, como resultados.
Daí sobrar uma deixa para a nossa reflexão: será que ao exigirmos democracia à ocidental em um país que não é ocidental, que ainda não chegou ao ponto de querer isso, por um setor majoritário de sua opinião pública, por si mesmo, sem precisar de nossa instigação, não é um pouco de pretensão nossa? O tal de, com perdão da palavra, “querer cagar regras e deitar ciência”, porque entendemos que aquilo que achamos ser bom para nós será, necessariamente, bom para os outros?
Lembremo-nos de duas verdades fundamentais; nem a Líbia é ocidental, para que toda a nação deseje com tanto ardor e unanimidade a democracia formal representativa, nem o Brasil é de fato uma democracia grandemente respeitável... Pelo menos, para ter como dar lições ao próximo, e falar de peito estufado, como tantas vezes têm aparecido em nossos meios de comunicação.
Pelo que diz, então, não se aplicaria o tiranicídio, já que inexistente o requisito da "tirania insuportável”...
Prezado Carlo, desde que li seu primeiro tópico, estou quebrando a cabeça para ver a quantos casos históricos se aplicaria de modo justo o conceito ciceroniano de tiranicídio, ou as considerações de Santo Tomás de Aquino, e ainda, as de Guilherme de Ockhan. Só para ficar nos casos da América Latina, quantos governantes que a história apontou, posteriormente, como tiranos, fora assim julgados por um número que fosse realmente dos mais significativos de seus contemporâneos? Por isso, cito de início governantes do século XIX.
Juan Manuel de Rosas, da Argentina? Ele é até hoje visto como o grande mantenedor da unidade nacional, depois das perdas do Paraguai e do Uruguai, em que pese os degolamentos que produziu. Melgarejo, da Bolívia, que agradava o povo com festas e distribuição de álcool, apesar da entrega de territórios bolivianos do Brasil, e de desmandos aos montes, a começar pelo assassinato, por suas mãos, de seu antecessor, o general Belzú? Ele era popular, junto do povo! O doutor Francia? Até hoje ele é visto como o pai do Paraguai, apesar – ou talvez, por isso mesmo – de seu nunca desmentido autoritarismo!
No século XX, talvez apenas Fulgencio Batista, nos últimos dias de seu domínio, e Anastacio Somoza, igualmente no seu crepúsculo, enfrentaram, de fato, oposição popular maciça, e somente contaram com a lealdade de suas forças armadas, porque os oficiais eram beneficiários do regime, e as tropas viam seus soldos complementados com generosas doações de dinheiro. Nem Trujillo, talvez o mais abusivo dos governantes do século XX, despertou tanto ódio popular, tanto que seu assassinato, velório e sepultamento provocaram crises de choro, no povo comum dominicano!
Daí eu me perguntar qual é a validade histórica de que se pense em aplicar com justeza o conceito de tiranicídio, porque um governante que seja visto como tirano por todos não chegaria jamais a atingir um poder que leve seu país ao paroxismo!
Não que não ache que muitos dos tais tiranos citados não tivessem merecido bala! Mas como estabelecer isso?
Texto escrito por Clóvis Pacheco que além de conhecedor do assunto teve em suas origens, um trisavô paterno beduíno islâmico sunita de Homs, na Síria, e a sua trisavó, cristã ortodoxa do rito antioquino.
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