Na realidade, qualquer um que chegasse de fora chamaria atenção.
Qualquer um que viesse querendo saber desse assunto. Faz quase dois anos que
tudo ocorreu. A cerca por onde escorreu o sangue de Adelino Ramos é a única
testemunha dos fatos. Ninguém quer abrir a boca. Ao longo do dia, jogam-nos de
um lado para o outro, sem fornecer informações sobre quem pode ter encomendado
a morte de Dinho. Líder do Projeto de Assentamento Florestal (PAF) Curuquetê, a
poucos e pedregosos quilômetros daqui, no sul do Amazonas, ele foi assassinado num domingo do
final de maio de 2011.
Cerca de um mês antes, havíamos conversado por telefone, num
intervalo de poucos minutos em que havia sinal de celular. “A gente defendeu um
projeto inovador no país, que é o assentamento florestal comunitário, e é esse
em que a gente está. Então, onde há matança de gente, onde há roubo de
barreiras, no estado do Amazonas… tudo que sai do Amazonas sai para Rondônia”,
contou. Adelino já estava encrencado.
Agora, em fevereiro de 2013, sob o calor abrasador do noroeste
rondoniense, espreitávamos sabendo que éramos espreitados. Vista Alegre é um
dos muitos distritos de Porto Velho, uma das maiores capitais do país. Como
vários dos povoados de Rondônia, tem um só caminho para entrar, sair ou fugir,
especialmente se não se está a bordo de uma picape. Dali a dez quilômetros, em
linha reta para o Norte, está o Amazonas, e dali a quinze, para o Sul, fica a
divisa com a Bolívia. Entre um lado e outro, madeira nobre sendo transportada à
luz do dia, em cinco mil viagens de enormes caminhões em direção ao Sudeste,
segundo contabilidade apreendida em poder dos “donos” da área.
A Polícia Federal e o
Ministério Público Federal investigavam havia quase três anos um esquema de
loteamento ilegal de terras da União convertidas em área de desmatamento. “É
terra sobre terra. Ninguém é dono. Com a instalação do assentamento Curuquetê,
isso começou a criar um impasse entre o pessoal que já estava lá. Como ninguém
tem título, o assentamento era um risco para eles”, contou um agente federal
envolvido na investigação. “A gente percebia que aquela situação estava
insustentável e poderia desaguar em alguma outra coisa. Não achava que podia
desaguar em crimes contra a vida.” Só depois da morte de Adelino a Justiça
Federal autorizou que se realizasse uma operação contra o corte ilegal da
floresta.
Logo após o crime, a Polícia Civil anunciou a prisão de Osias
Vicente, envolvido com madeireiros locais, acusado de matar Adelino. Mas, até o
fim do ano, o Ministério Público Estadual não havia oferecido denúncia. Uma
história sem um pingo de originalidade: o Judiciário libertou o suposto
matador, que um mês depois acabou assassinado, o que levou ao arquivamento do
caso sem que se chegasse aos mandantes do crime contra o líder sem-terra.
Sem colher bons resultados em Vista Alegre, fomos até Extrema,
outro distrito de Porto Velho, onde Adelino foi atendido após os disparos. “No
caminho para Extrema, um carro ficou fechando eles, não deixou correr. Até hoje
ninguém soube me dizer que carro que era. Nem a placa”, contou mais tarde um
amigo da família que também não conseguiu arrancar informação alguma sobre a
morte. A ficha de atendimento é lacônica: óbito provocado por perda de sangue.
No posto policial, o boletim de ocorrência sobre Adelino é o maior da unidade:
uma pilha de meio metro de papel depositada entre duas cadeiras. Um dos
escrivães – são dois no total, respondendo por quatro distritos – não dá
esperança de que a investigação avance. São muitos casos para cuidar e a
estrutura é extremamente precária.
No começo, não sabíamos se dormiríamos em Vista Alegre. Depois do
clima tenso com que nos deparamos, não resta dúvida de que o mais seguro é
retornar ao centro de Porto Velho, para decepção do padre irlandês Bernard Leo
Dolan, amigo da família de Adelino que esperava retornar com algo mais. É, de
fato, um começo de viagem ruim.
Entre 2013 e 2014, quase sempre na companhia do fotógrafo Gerardo
Lazzari, percorro Rondônia para tentar entender as histórias que envolvem o
chamado “massacre de Corumbiara”, ocorrido em 9 de agosto de 1995 durante uma
operação de reintegração de posse na fazenda Santa Elina, no sul do estado.
Segundo os números oficiais, 12 pessoas morreram – nove sem-terra, dois
policiais e um rapaz não identificado, possivelmente um pistoleiro. Resumindo
de maneira simplória, a acusação levou ao julgamento de dois posseiros e de 12
agentes de segurança. Do lado dos ocupantes, saíram condenados Cícero Pereira
Leite Neto, seis anos e dois meses de reclusão, e Claudemir Gilberto Ramos,
oito anos e meio. Entre os PMs, foram sentenciados os soldados Airton Ramos de
Morais, a 18 anos, e Daniel da Silva Furtado, a 16 anos, e o então capitão
Vitório Régis Mena Mendes, a 19 anos e meio.
A história de Adelino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Corumbiara na época, é uma entre várias relacionadas ao caso.
Fundador do Movimento Camponês Corumbiara (MCC), de 1995 a 2011 conseguiu
assentar muitas famílias, brigou com amigos e inimigos, zanzou Rondônia de sul
a norte, escapou da acusação pelas mortes ocorridas na Santa Elina. Em Lábrea,
no Amazonas, esperava tocar mais um assentamento. Num lugar improvável. “Não
tem condição nenhuma de manter qualquer atividade produtiva. Não tem terra, não
tem água, não tem luz. Tem todo tipo de problema de malária, febre amarela,
bicho peçonhento”, contou um agente federal.
Nos dias seguintes àquela busca pouco frutífera por informações em
Vista Alegre, os gringos ficaram em Porto Velho, enquanto Gerardo e eu fomos a
Theobroma, no centro do estado, onde acabaram assentadas entre 1995 e 1996
algumas das famílias do episódio da Santa Elina. O começo da conversa era quase
sempre igual: recebiam-nos com desconfiança, cara amarrada, incomodados com o
assunto. Parecia que daquele mato não sairia coelho. Até que a pessoa,
geralmente homem, começava a se soltar – e a soltar informações. Nossa cabeça
de paulista planejava fazer várias entrevistas ao dia, ignorando que na roça o
tempo é outro, que é preciso esperar o caboclo escolher o momento certo de
falar, criar laços de confiança.
A última parada prometia ser a mais tensa. Havia um misto de
curiosidade e receio por chegar ao palco dos acontecimentos. Depois de conhecer
Vista Alegre, vislumbrávamos algo parecido em Corumbiara. Não foi o que
ocorreu. Ainda que muitos tenham se dado conta de nossa presença, e até mesmo
dos motivos dela, os fatos de 1995 eram passado para a maior parte das pessoas.
Nas outras vezes, já sabendo andar sozinhos pela região, vimos
situações mais perigosas, mas não para nós. Na época do conflito, o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não chegou a desapropriar a
Santa Elina, operação que retomou 12 anos mais tarde, abrindo uma disputa pelas
terras férteis e simbólicas. A Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia,
ex-aliada de Adelino, e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara
acabaram obrigados a dividir o assentamento. Basicamente, adversários
revolucionários e reformistas foram colocados dentro de um mesmo espaço. “O
povo que não sofreu o massacre com a gente fica implicando. Tem hora que eu
fico revoltado. Ficam pisando na gente. Eu pensava que a gente era tudo amigo”,
contou um homem, sob ameaças de morte por desentendimentos mesquinhos.
Sempre deixávamos Rondônia com a sensação de que seria importante
voltar. Os relatos dos sem-terra eram interessantes, mas repetitivos e
insuficientes. Era necessário entrevistar advogados, promotores, juiz,
políticos, integrantes de movimentos sociais.
Poucas passagens foram tão desgastantes quanto a conversa com o
ex-secretário-executivo de Valdir Raupp, governador na época do episódio da
Santa Elina. Telefonei para Édio Antônio de Carvalho no começo de 2014. Ele
avisou que só conversaria pessoalmente. Liguei de novo avisando que embarcaria
nos próximos dias para Porto Velho. “O Édio que você está procurando é outro”,
respondeu.
Era um sábado de manhã quando peguei o carro e fui ao condomínio
onde morava, nas imediações do centro de Porto Velho. Por sorte, o esquema de
segurança era frouxo e o rapaz da portaria não anunciou minha chegada. Quando
entrei em sua casa, fez uma cara de surpresa indescritível. “Cansou de tomar
‘não’ pelo telefone? Veio tomar ‘não’ pessoalmente?”, perguntou, muito
irritado.
Com o passar dos minutos, acalmou-se e começou a narrar sua
versão. Uma versão diferente da que está registrada em relatório da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara. Em 1995, Édio contou a deputados que não se chegou
a um desfecho pacífico porque o fazendeiro Antenor Duarte do Valle, vizinho da
área ocupada, rejeitou acordo para assentar as famílias. Agora, ele culpava os
sem-terra, a quem acusou de intransigência no diálogo, e dizia sofrer de
amnésia em relação a pontos incômodos. O ex-secretário-executivo disse ter
recebido ordem para prestar todo apoio às famílias, desde que aceitassem deixar
a fazenda.
No meio da prosa, criticou o governo do PT, tido como comunista, e
afirmou que, no que dependesse de Lula, Evo Morales teria invadido o Brasil.
Queixou-se de não conseguir mais contratar empregada devido ao Bolsa Família.
Enquanto conversávamos, sua mulher perguntou em que veículo jornalístico eu
trabalhava porque queria ler minhas reportagens para saber se eu era de
esquerda. Deixou ameaças no ar. Decidi sair dali o quanto antes. Meti-me no
centro de Porto Velho e fiquei rodando um tempo, até ter certeza de que não
haveria problema.
Em outras oportunidades, momentos de alta tensão se revelaram
calmos. Ou viraram frustração. Por duas vezes, tentei conversar com os
policiais militares de Vilhena, divisa com o Mato Grosso, sede do batalhão em
que atuava a maior parte dos envolvidos no caso da Santa Elina. Na primeira, um
PM esperou que eu chegasse à cidade para dizer que havia se arrependido e não
queria mais conversar. Outro viajou sem avisar e pediu que aguardasse por uma
semana ou dez dias, até a volta.
Na segunda vez, depois de uma entrevista animadora, parecia que
andava por bom caminho. A promessa era de que três policiais dariam uma
entrevista às 7 horas.
– Oi. O pessoal não apareceu ainda?, perguntou o PM que havia
garantido a conversa.
Passei o dia inteiro sentado, à espera de que viessem, sempre com
promessas renovadas de que estavam a caminho. Na manhã seguinte, fui ao
batalhão. Receberam-me com conversas sobre amenidades, contaram sobre o
bem-sucedido esquema de patrulhamento de ruas de Vilhena e me despacharam sem
contar nada sobre o que queria ouvir. Durante mais dois dias, busquei por todos
os meios conversar com os policiais. Nunca tomei tanto perdido na vida. Saí de
lá puto, sabendo que aquela apuração estava encerrada.
Era o fim irritante de um trajeto que começara de maneira tensa.
No começo de 2011, entrevistei Claudemir Gilberto Ramos, sem-terra condenado a
oito anos e meio de prisão pelas mortes de dois policiais vitimados no caso da
Santa Elina. Filho de Adelino, ele se recusava a cumprir a pena, que
considerava injusta. Aquela narrativa, tão cheia de lacunas, foi o que me
motivou a entender melhor a história, contada no primeiro capítulo do livro,
compartilhado agora com os leitores.
Ø
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